Se você perguntasse a um grupo sobre quais jogos definiram o Sega Dreamcast, é quase certo que Jet Set Radio estaria na lista. O inovador jogo de roller-blading, desenvolvido pela Smilebit, uma subsidiária da Sega, foi um dos títulos mais originais da plataforma. Ele apresentava uma premissa empolgante, envolvendo gangues de rua que sprayavam grafite em uma versão futurista de Tóquio, embalado por um estilo visual em cel shading que era revolucionário na época, acompanhado de uma trilha sonora eclética que ia do rock ao hip hop, funk, jazz e dance.
Era o tipo de jogo que só uma empresa como a Sega faria. Com uma estética descolada e urbana, Jet Set Radio era algo que você queria compartilhar com os amigos, na esperança de que um pouco da sua “descoladeza” pudesse te contagiar. Assim, quando em 2003 foi anunciada a parceria entre a Vicarious Visions, desenvolvedora de Nova York, e a THQ para lançar uma versão para Game Boy Advance, havia uma mistura de animação e ceticismo na comunidade gamer. Muitos estavam curiosos para saber se a nova versão conseguiria manter a mesma qualidade e charme do original, ou se seria apenas mais uma tentativa de explorar uma marca popular.
Rob Gallerani, um ex-colaborador da Vicarious Visions, atuou como designer principal e artista na versão para Game Boy Advance de Jet Set Radio. Recentemente, ele compartilhou com a Time Extension o que foi transformar o título da Sega, nos dando insights fascinantes sobre quais eram os planos da Vicarious Visions para o projeto, o papel limitado da Smilebit na criação e quais melhorias ele faria caso tivesse a oportunidade de revisitar o jogo hoje.
Os jogadores começam controlando Beat, Gum e Tab, mas podem desbloquear novos personagens conforme avançam, incluindo o adorado DJ Professor K. “Não consigo recordar os detalhes exatos de como conseguimos essa parceria,” Gallerani relembra. “Acho que tudo se resume a Karthik e Guha Bala, os co-fundadores da Vicarious Visions. Eles provavelmente conheceiam alguém que conhecia alguém. Naquela época, estávamos buscando qualquer IP ou jogo que pudéssemos aproveitar usando o motor isométrico que desenvolvemos para Tony Hawk’s Pro Skater 2.”
“Se você lembrar, era a época da EA Big, com SSX e outros jogos relacionados ao Tony Hawk, como Kelly Slater’s Pro Surfer e Matt Hoffman’s Pro BMX. Eles tentavam criar vários clones do Tony Hawk, e como tínhamos um motor que fazia isso, estávamos basicamente à caça de qualquer IP disponível. E Jet Set Radio era uma oportunidade incrível.”
Eu sou dono de um Dreamcast apenas por dois jogos: Jet Set Radio e Crazy Taxi. Trabalhar nesse projeto foi uma experiência incrível para mim. “Sou um fã declarado de Jet Set Radio. Na verdade, eu tenho um Dreamcast só por causa de dois jogos: Jet Set Radio e Crazy Taxi. Então, conseguir trabalhar nesse projeto foi maravilhoso e foi meu primeiro crédito como designer.”
Para dar um pouco de contexto, antes do anúncio de que a Vicarious Visions desenvolveria a versão de Jet Set Radio, a THQ e a Sega já tinham colaborado em vários outros títulos, após firmar um ambicioso acordo em 2001 para co-publicar e desenvolver 16 jogos para GBA no mercado norte-americano. Segundo Peter Moore, na época COO da Sega Corporation, a ideia por trás dessa parceria era que a Sega, que havia se afastado do mercado de consoles, aproveitasse o “conhecimento sem igual da THQ sobre a plataforma GBA” para levar seus títulos mais reconhecíveis para o console da Nintendo e expandir sua presença na categoria de portáteis.
Jet Set Radio foi, então, pensado como uma continuação desse plano, com a Vicarious Visions vendo uma grande oportunidade de reutilizar ferramentas e técnicas desenvolvidas em portas de Tony Hawk’s Pro Skater 2, 3 e 4. Contudo, a tarefa acabou sendo muito mais complicada do que todos imaginavam, pois a equipe teve menos suporte no desenvolvimento e percebeu que o que funcionava bem no Tony Hawk não necessariamente se encaixava suavemente em Jet Set Radio.
Ao começar a trabalhar no projeto, uma das primeiras metas da equipe foi tentar recriar o icônico visual em cel shading do jogo. Como recordamos da “Making Of” de Tony Hawk, o motor utilizado em Tony Hawk’s Pro Skater 2 aproveitava um mapa de altura (uma representação 2D de um espaço tridimensional), que criava a impressão de um mundo 3D. Quanto ao personagem skatista, não era um sprite pré-renderizado, mas os desenvolvedores criaram seus próprios modelos 3D de menor poligonalidade em aplicações como 3D Studio Max, antes de usar um renderizador 3D em tempo real, criado pelo funcionário da Vicarious Visions, Alex Rybakov, para renderizar a figura dentro de um sprite de 64×64.
“Renderizávamos cinco vezes. Mas as quatro primeiras eram deslocadas um pixel”, explica Gallerani. “Assim, conseguimos o contorno em volta de tudo.” Para Jet Set Radio, a abordagem foi similar, mas com trabalho adicional exigido no processo de renderização, a fim de adicionar o toon-shading e captar o estilo do original.
“Fizemos a renderização cinco vezes”, diz Gallerani. “Mas as quatro primeiras eram deslocadas um pixel. Dessa forma, conseguimos o contorno em volta de tudo. O resultado foi um personagem em toon-shading.” Essa abordagem funcionou surpreendentemente bem, com os personagens se tornando aproximações bem fiéis de seus homólogos da versão para console. Mas o próximo desafio era descobrir a forma mais eficiente de animá-los, que acabou sendo um pouco mais frustrante.
Em todos os jogos anteriores de Tony Hawk, a Vicarious Visions frequentemente conseguia obter todos os ativos necessários do desenvolvedor original, a Neversoft, incluindo os dados de captura de movimento. Mas, em Jet Set Radio, a situação era um pouco diferente, com o único contato do estúdio com a Smilebit sendo algumas trocas de e-mails técnicos que precisavam ser traduzidos via Yahoo! Babelfish, devido à barreira linguística. Como resultado, a equipe frequentemente teve que improvisar para avançar no projeto.
“Tentamos solicitar ativos, mas, eventualmente, decidimos que tínhamos alguns discos em casa”, relembra Gallerani. “Assim, acabamos hackeando o disco do Dreamcast porque não conseguíamos obter ativos reais. Mas felizmente, as animações de Jet Set eram bem mais simples que as do Tony. Em Jet Set, você basicamente está patinando, fazendo grinds ou sprayando grafite. Então, foi totalmente viável criar nossas próprias animações.”
Se você nunca jogou Jet Set Radio e precisa de um rápido resumo, ele é essencialmente um jogo baseado em missões, onde os jogadores escolhem uma localização a partir de um mapa (Benten-Cho, Kogane-Cho, Shibuya-Cho, Grind City) antes de serem lançados em um cenário onde devem pintar sobre as tags de gangues rivais dentro de um limite de tempo, enquanto desviam da polícia. Para a versão portátil, essa fórmula foi mantida, mas a equipe precisou refazer cada um dos níveis para se adequar à nova perspectiva isométrica do jogo. Isso exigiu um estudo minucioso da obra original, a fim de encontrar soluções criativas para áreas onde o layout 3D original apresentava dificuldades.
“Para você ter uma ideia da referência que utilizamos, acabamos comprando o guia da Brady Games e também analisamos alguns sites de fãs online”, diz Gallerani. “O bom era que o Jet Set Radio original era bem arcade, o que funcionava muito bem para nosso motor. Assim, não precisávamos mudar muito a jogabilidade, apenas o tempo que você tinha, porque os tamanhos dos níveis eram fundamentalmente diferentes. Era realmente uma questão de quão perto conseguimos replicar todo esse conteúdo em um novo formato, e a maior parte do tempo sinto que conseguimos tudo, exceto em alguns casos.”
Gallerani também discute os desafios enfrentados ao inserir a mecânica de esconder personagens atrás de objetos. Ele detalha que, em Jet Set Radio, essa técnica se revelava crucial para manter a imersão, apesar de ser algo que muitos jogadores não percebiam à primeira vista. O objetivo eram pequenos detalhes que tornavam a experiência autêntica.
“Em Jet Set Radio, havia momentos onde você tinha uma passagem acima de outro lugar, o que significava que tínhamos que descobrir como fazer os personagens passarem por baixo”, ele explica. “Esse tipo de técnica havia sido usada nos jogos de Tony Hawk, mas em Jet Set Radio precisávamos levar isso a um novo nível, pois os mapas eram mais apertados e complexos.”
No geral, a equipe conseguiu manter a fidelidade a alguns dos layouts de nível mais icônicos do jogo original, mesmo com a nova perspectiva. Contudo, níveis mais complexos, como Grind City, passaram por mais alterações, sendo um dos que mais mudou. Grind City foi uma área que não estava presente na versão original do Dreamcast japonês, sendo acrescentada apenas na versão ocidental. Essa área possuía dois mapas diferentes — Bantam Street e Grind Square — que foram combinados em um único nível na versão para Game Boy Advance.
“No final das contas, trabalhamos para unir Grind Square, que era um dos mapas mais desafiadores de criar, com a mais simples Bantam Street”, explica Gallerani. “Um dos níveis é como uma versão do Times Square, onde você está no centro da cidade cercado por grandes edifícios. Para isso, tivemos que ser mais criativos, pois não podíamos colocar um prédio muito alto na parte da frente.”
É claro que a arte e o design de níveis não foram os únicos desafios da equipe durante o projeto. Outro grande obstáculo foi a limitação das capacidades sonoras do Game Boy Advance. No jogo original do Dreamcast, havia mais de 21 faixas, que simplesmente não poderiam ser recriadas na íntegra. Por conta disso, a Vicarious Visions recorreu a seus amigos da Shin’en Multimedia, que também atuaram nos jogos de Tony Hawk para o GBA, para criar efeitos sonoros e clipes de áudio que se encaixassem na memória disponível.
“O player de som do Game Boy Advance não era um sistema THX ou Dolby Surround,” diz Gallerani. “Então tudo teve que ser comprimido. Estou bastante certo de que conseguimos usar o áudio exato, porque, ao contrário de Crazy Taxi e Tony Hawk, a música foi quase toda feita para o jogo. Assim, só precisávamos fazer versões MIDI ou FMOD. O bom é que o estilo da música facilitou essa adaptação para sonoridades mais retro.”
O desenvolvimento do jogo durou cerca de 9 meses até sua conclusão, e a versão finalmente foi lançada nas lojas norte-americanas em 24 de junho de 2003, com o lançamento europeu seguindo um ano depois, em 2004, após um longo atraso. Como você poderia imaginar, havia grande expectativa tanto de fãs da Sega quanto da Nintendo. Entretanto, a reação na época do lançamento foi um tanto mista, surpreendendo alguns.
A IGN, que havia elogiado Tony Hawk’s Pro Skater 2 (GBA) como “uma maravilha técnica”, não hesitou em expressar um entusiasmo considerável pela nova versão, descrevendo o jogo como “divertido” e afirmando que sua apresentação valia o preço.
Por outro lado, houve críticas severas ao título, como a da revista britânica Edge, que deu uma nota de 4/10, argumentando que “a natureza intrincada dos níveis de Jet Set Radio não se adequa à apresentação isométrica” e que, embora não seja “um port preguiçoso”, “a lealdade da conversão é mal aconselhada.”
Analisando a resposta ao jogo, Gallerani especula sobre os motivos que fazem de Jet Set Radio um título divisivo em comparação com os jogos de Tony Hawk, apontando que algumas escolhas feitas durante a conversão acabaram sendo menos intuitivas.
“Um dos aspectos estranhos de Jet Set é a maneira como a câmera funcionava. Quando você não tem a câmera operando como em 3D, isso fica mais evidente, enquanto em Tony Hawk, todos os controles eram centrados na câmera,” explica. “Se você apertava para baixo, Tony se movia em direção à câmera, e a câmera se ajustava automaticamente para ficar atrás dele. Isso significa que você está vendo o mundo através de uma tela, e tudo que você controla é relativo a essa tela.”
Além da campanha para um jogador, havia também um modo multiplayer que utilizava o cabo de ligação, algo que Gallerani comenta que a equipe “decifrou” enquanto trabalhava em Tony Hawk’s Pro Skater 3.
“Em Jet Set, os controles são relativos ao personagem, mas a câmera tenta seguir o skatista de forma agressiva. Isso cria a ilusão de que é centrada na câmera, mas na verdade não é. E, como nossa câmera não rotacionava, isso exigiu algumas mudanças para que funcionasse corretamente. Essa pequena diferença é percebível.”
Quando se trata das físicas mais cartunescas de Jet Set Radio, Gallerani observa que uma grande diferença entre os dois jogos é que, em Tony Hawk, a altura do salto dependendo da velocidade. Enquanto em Jet Set, a altura do salto é fixa, independentemente da velocidade do skatista. Ele acredita que essas sutis diferenças impactam a quem espera que Jet Set se traduza exatamente como Tony Hawk.
“Se você entra no Jet Set esperando que ele traduza da mesma forma que Tony, você verá essas diferenças.” Ao olhar para o trabalho de adaptação que poderia ter feito, Gallerani gostaria de ter tomado uma abordagem mais alternativa, sugerindo que teria sido mais interessante contar uma nova história para expandir o universo, ao invés de simplesmente recriar o que já existia. Embora ele confesse que a Sega provavelmente não teria permitido essa mudança.
Uma nova tecnologia criada para a versão GBA de Jet Set Radio foi uma versão do editor de grafite do jogo Dreamcast. Com ele, era possível criar arte em pixel que poderia ser sprayada nas paredes enquanto completava as missões. Porém, como a Vicarious Visions não poderia permitir que os jogadores criassem arte em pixel para cada um dos diferentes ângulos do mundo, essas artes podiam ser sprayadas apenas em paredes voltadas para o jogador.
“Dissemos: ‘Esse é Jet Set Radio, nós vamos recontar Jet Grand Radio'”, diz Gallerani. “Mas era isso. Mesmas personagens, mesma história, tudo igual. Teria sido legal dizer: ‘Vamos construir novos lugares, criar novos personagens e contar novas histórias.’ Não porque eu quisesse que fosse uma obra própria, mas porque isso tornaria a adaptação mais interessante e permitiria criar níveis que seriam ainda melhores no Game Boy Advance.”
Ele acrescenta: “Eu também teria buscado um cartucho maior e tentaria desenvolver mais o sistema de grafite e alguma coisa mais multiplayer, como um modo de tag. É uma pena que o multiplayer do Game Boy Advance dependesse de cabos de ligação, mas seria incrível fazer algo com o GameCube. Naquela época, você podia conectar um Game Boy Advance a um GameCube, então, mesmo que tudo que fizéssemos fosse um modo espelho onde você jogaria em uma tela maior, isso seria bem legal.”
Passaram-se 22 anos desde que Jet Set Radio GBA foi lançado, e Gallerani continua presente no mundo dos games. Após o lançamento, ele seguiu na Vicarious Visions, onde se tornou diretor de design do estúdio, antes de deixar a empresa em 2023. Atualmente, ele trabalha na desenvolvedora independente Super Evil Megacorp como diretor sênior de design.
